O que não se traduz em palavras:
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Quando o Gelo Começa a Falar.
É impossível continuar lendo quando o navio começa a quebrar o gelo. As placas se partem, criando pequenas ondas. Algumas se erguem, outras mergulham e voltam — parecem dançar.
Observar esse espetáculo pela janela da cabine me faz esquecer do chá recém-preparado, do livro aberto no colo. Fecho tudo, brigo com o zíper da parka e corro lá fora.
Faz muito, muito frio.
O Silêncio que Toca
Há neve acumulada sobre o chão de madeira e eu, de tênis, caminho com cuidado, com medo de escorregar.
Abro a porta pesada da lateral e seguro firme ao fechá-la, lembrando das recomendações de uma das biólogas:
“O Ártico é silencioso. Os animais se assustam com barulhos, mesmo distantes. Segurem as portas!”
O vento me leva. Carrega meus cabelos, esfria minha cabeça.
Estou só com um casaco. Normalmente uso dois — o impermeável por baixo, a parka por cima — e mais alguns acessórios que só quem sente frio demais entende.
Estou sozinha no convés. Eu, o vento cortante, o branco e o som do gelo se partindo.
A neve toca meu rosto. Fecho e abro os olhos. O Ártico é mesmo silencioso.
Aprender a Olhar
Durante toda a expedição, estivemos cercados por biólogos, geólogos, fotógrafos, historiadores e mergulhadores. Estudiosos e entusiastas das regiões polares — mas, acima de tudo, apaixonados pela Natureza.
A cada dia, aprendíamos com eles sobre a vida selvagem, sobre as primeiras expedições do século XX, sobre Roald Amundsen e outros exploradores. Sobre a luta pela sobrevivência em um ambiente tão inóspito.
E aprendíamos também a olhar. A respeitar. A não interromper o que é vivo.
O Urso na Neve
A voz do comandante soou animada no alto-falante: ele havia avistado uma morsa… e, possivelmente, “uma criatura de quatro patas, de cor creme”.
Foi assim que descreveu, pausadamente, nos convidando a ir até a ponte de observação.
Eu estava tão quentinha. Mas levantei num impulso. Vesti todas as camadas possíveis, peguei a câmera e corri.
A ponte estava lotada quando cheguei — e, claro, todos os binóculos já tinham dono. Passageiros e tripulantes colados nas janelas, apontando, dividindo impressões:
— “Você viu?”
— “Ele está ali!”
Uma das coisas que mais me encantam nessas viagens é a atmosfera de partilha.
Todos vibram com o que veem, com o que aprendem, com o que podem ensinar.
Não demorou para alguém me chamar:
— “Vem ver aqui nesse monóculo!”
Nadando primeiro. Depois, subindo numa placa de gelo, lá estava ele: o urso polar.
O sorriso veio automático. Acredito que exista dentro de nós uma alegria natural ao ver a Natureza livre, em seu lugar.
A Liberdade tem Forma
Solitário — ou solitária — naquela imensidão branca. Andava devagar, subia blocos de gelo, mergulhava, voltava. Se espojava na neve depois da água — o que, como aprendi na palestra da noite, serve para tirar o sal dos pelos.
Naquele instante, me lembrei da visita que fiz anos atrás ao Aquário de São Paulo. Do mal-estar que senti ao ver um urso polar confinado ali.
E de como, para mim, é pesado ver algo privado da liberdade, quando sua própria natureza é ser livre.
Ficamos ali, observando. Em silêncio.
O navio parado, respeitando o limite da reserva natural. Nada além do necessário.
O Que é Lar para Alguns
O Ártico pode parecer inóspito para alguns, mas é lar para muitos.
Ele nos lembra das diferenças — e, a cada instante, nos convida a respeitá-las.
No Ártico, tudo é extremo: o frio, o silêncio, a imensidão.
O Maior Aprendizado
Durante essas duas semanas, cercada por aulas ricas em conteúdo, o maior ensinamento foi estar ali — inteira, presente, conectada com o que não se traduz em palavras.
Compreendi que a Natureza se impõe com beleza, mas também com força, num cenário verdadeiramente selvagem.
Estar ali me fez pensar em como é urgente repensarmos nossa presença no mundo.
Como é urgente cultivarmos o silêncio, o cuidado e a consciência das nossas escolhas.